:: ArtigosO poder invisívelGaudêncio Torquato12/07/2019 11:45:00Levar
39 kg de cocaína na bagagem para o Exterior e, mais, dentro de um avião da
frota presidencial, é coisa para deixar perplexo qualquer cidadão. O sargento
da Aeronáutica, Manoel Silva Rodrigues, flagrado em Sevilha, na Espanha, onde
aguardava a comitiva do presidente Bolsonaro de volta da reunião do G-20, em
Osaka, no Japão, pode desvendar o mistério: como a droga usa “mulas” das Forças
Armadas para sair do país?
O lamaçal está em todas as partes, até nos santuários considerados
sagrados e invioláveis, como deveriam ser o Judiciário e as Forças Armadas.
Norberto Bobbio, o filósofo italiano, em seu clássico O Futuro da Democracia,
aponta a eliminação do poder invisível como uma das promessas não cumpridas
pela democracia.
Esse poder consiste em ações criminosas de grupos que agem nas entranhas
da administração pública, dando formato a um duplo sistema de poder, chegando,
em certos momentos, a “peitar” a estrutura formal de mando. Exemplo desse
fenômeno é o crime perpetrado dentro do sistema de segurança do próprio
presidente da República. Imagine-se o que poderia ocorrer se na equipe houvesse
um terrorista, alguém capaz de realizar um atentado mortal.
O fato é que há uma máfia agindo nas sombras da administração, não
mapeada pelos órgãos de controle e segurança, como o Gabinete de Segurança
Institucional.
Pensemos. Um dos princípios basilares da democracia é o jogo aberto das
ideias, o debate, a publicidade dos atos governamentais, a liberdade de
expressão, instrumentos do poder estatuído. Já nos regimes ditatoriais, o
Estado pode agasalhar ilícitos e que ferem os direitos dos cidadãos. As
democracias modernas conservam mazelas do autoritarismo, entre as quais a
capacidade de confundir o interesse geral com o interesse individual ou de
grupos, a preservação de oligarquias e a expansão de redes invisíveis de poder.
É assim que no seio das democracias vicejam novas formas de ilegalidade,
teias aéticas nas relações políticas, clientelismo, voto fisiológico,
manutenção de feudos, etc. Nessa esteira, as massas passam a desacreditar na
política e em seus atores. A apatia se instala. As taxas de credibilidade nos
governantes decrescem, como se observa hoje por aqui, os valores éticos se
estiolam, os fundamentos morais da sociedade se abalam. O resultado de tudo
isso é o atraso no processo de modernização política e social.
As reformas que se pretendem promover – a partir dessa complicada e
polêmica reforma tributária – não ensejariam, sob essa ótica, a eliminação das
deformações da democracia, senão um lento avanço no caminho do aperfeiçoamento
democrático.
Portanto, sejamos realistas: teremos de conviver, por muito tempo ainda
com o poder invisível e suas nefastas consequências. Apurar se políticos,
empresários e organizações têm ou não dinheiro no Exterior, se fizeram parte de
esquemas de corrupção, se arrombaram os cofres da Petrobras e do BNDES,
investigar quem passa informações sigilosas para a Intercept Brasil, ou, ainda,
verificar as ligações entre procuradores e juízes, são questões que não matam o
vírus da corrupção.
Funcionarão como agulha lancetando um tumor, mas este pode aparecer, a
qualquer momento, em outra parte do corpo, caso não seja atacada a origem da
doença. E qual é a causa? Há muitas, mas o estágio civilizatório de um povo é,
em última análise, o fator determinante a balizar a trajetória de um país.
Povos dóceis, indiferentes, ignorantes, passivos parecem ser da preferência dos
governantes, enquanto a democracia necessita de cidadãos ativos, conscientes,
participativos.
A cidadania ativa é fruto da educação. Não adianta fazer reforma política
- mudar sistema de voto, exigir fidelidade partidária, - se os súditos, na
simbologia de Bobbio, se assemelham a um bando de ovelhas pastando capim.
A promessa da democracia - de educar os cidadãos - é, por isso mesmo,
compromisso prioritário para que o Brasil possa sair do estágio
pré-civilizatório que se encontra em matéria de cidadania política.
Quando todos os brasileiros estiverem repartindo o mesmo prato cultural,
inseridos no banquete da consciência cidadã, nossas doenças culturais poderão
ser curadas com simples vitaminas.
Gaudêncio
Torquato, jornalista, é professor titular da USP, consultor político e de
comunicação
Twitter @gaudtorquato
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