:: ArtigosO sonho da Grande PátriaGaudêncio Torquato07/11/2019 15:28:00O dado é
surpreendente. Cerca de 80 grupos criminosos têm algum controle sobre os
presídios. Exercem o extraordinário poder de mandar matar, extorquir,
comercializar drogas, enfim, expandir a violência por todo o território. A
situação preocupa ante a moldura que se desenha, no caso, o fim das prisões
após condenação em 2ª instância. Ah, mas a prisão provisória vai continuar,
alguns argumentam. Mas a previsão é de que os cárceres ficarão ainda mais
superlotados.
Hoje, já somam 337
mil os presos “provisórios”, 41,5% de todos os encarcerados. A perspectiva é a
de que, acabada a prisão após condenação em 2ª instância, o país aprofunde o
ciclo da prisão provisória. O que seria mais um estrangulamento no nosso
sistema prisional. Pior, um retrocesso com o endosso de nossa mais alta Corte.
Generaliza-se a
sensação de que o País continuará a navegar nas ondas da impunidade. Donos de
lavanderias de dinheiro, exércitos do crime, bandidos de todos os espectros,
flagrados com a mão na massa, continuarão leves e soltos, a confirmar a tese de
que o Brasil é, por excelência, o território da desobediência explícita. Nada
mais surpreende. O esculacho chega a tal ponto que os chefes dos grupos
criminosos, mesmo jogados em prisões longínquas dos grandes centros, transformam
o cárcere em escritórios. O Estado formal não consegue enfrentar o mando do
Estado informal.
Os criminosos, aliás, têm na ponta da
língua a indagação: qual a diferença entre nós e os bandidos de
colarinho branco?
Ondas de terror se expandem, sob a
expressão enganadora de governantes que dizem controlar grupos organizados do
crime. Balela. O poder invisível, que parece festejar a barbárie que consome o
País, não tem escrúpulos nem receio de mostrar a cara.
Elevam-se ao nível do poder do
Estado. Só falta mesmo os grupos criminosos mobilizarem seus “exércitos nas
ruas e nos cárceres” em movimentos cívicos pela punição aos “criminosos da
política”.
E não será surpresa se parcela
significativa da população aplaudir a bandidagem do andar de baixo contra a
turma que faz zoeira no andar de cima. Afinal de contas, a passarela da
criminalidade e o desfile de impunidade assumem dimensões grandiosas e formas
escandalosas. O ex-juiz Sérgio Moro até imaginou que, na condição de ministro
do governo, poderia agregar mais força e aumentar a estrutura para combater o
crime. Ledo engano. O Legislativo, por conveniência, faz sérias restrições aos
projetos do ministro.
O fato é que, ante a possível decisão
do STF no sentido de acabar com a prisão de condenados em 2ª instância,
corruptos e facínoras, com o mesmo status perante a lei, vão se valer dos
mecanismos de protelação – recursos e embargos até eventual condenação em 3ª
instância ou em última e com trânsito em julgado de suas causas.
Não é de estranhar que a anomia - o
descumprimento da lei - tome conta do País. Voltaremos aos idos da Colônia e do
Império. Pinço um caso do passado. Tomé de Souza, primeiro governador-geral,
chegou botando banca. Os crimes proliferavam. Avocou a si a imposição da lei,
tirando o poder das capitanias. Mandou amarrar um índio que assassinara um
colono na boca de um canhão. Mas o tiro não assombrou os
tupinambás. Não havia jeito de evitar a desordem. Foi então que
apareceram as Ordenações do Reino (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas), que
vigoraram até 1830. Severas, estabeleceram a pena de morte para
a maioria das infrações, coisa que chegou a espantar Frederico, o Grande, da
Prússia, que ao ler Livro
das Ordenações, indagou: “Há ainda gente viva nas
terras de Portugal?” Com o tempo, o rigor foi atenuado e o crime voltou com
força.
Entre sustos e panos quentes, o Brasil
semeou a cultura do faz-de-conta na aplicação das leis. E aí passamos a sofrer
a doença espiritual da Nação: a indiferença da população diante de crimes mais
atrozes.
Esse é o ambiente que faz florescer o
poder invisível, cancro das democracias contemporâneas. O custo
da violência no Brasil passa de cerca de R$ 300 milhões por dia, em cálculos
feitos pelo ex-secretário nacional de Segurança Pública, coronel José Vicente.
Fosse esse o único saldo negativo, o País poderia comemorar. Mas o custo
emocional é impagável. Morre-se um pouco a cada dia, levando a esperança, a fé
e o sonho de termos uma Grande Pátria.
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor
titular da USP, consultor político e de comunicação
Twitter @gaudtorquato
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