"Valha-me Nossa Senhora, Mãe de Deus de
Nazaré! A vaca mansa dá leite, a braba dá quando quer. A mansa dá sossegada, a
braba levanta o pé. Já fui barco, fui navio, mas hoje sou escaler. Já fui
menino, fui homem, só me falta ser mulher." O astuto João Grilo podia
recitar versos destrambelhados, fazer traquinagens com o grande amigo Chicó e
arrematar impressões com a maior inocência, como a que fez para Manuel, o Leão
de Judá, o filho de David, o Jesus negro que pontifica na peça O Auto da
Compadecida: "O senhor é Jesus? (...) Aquele a quem chamavam Cristo? (...)
Não é lhe faltando o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos
queimado". Grilo jamais podia adivinhar que suas lorotas poderiam, um dia,
em vez de gostosas gargalhadas, causar sérios dissabores. A ele e ao pai que o
gerou: o teatrólogo, o advogado, o cancioneiro, o romancista da Academia
Brasileira de Letras, o genial paraibano Ariano Suassuna.
Falta pouco para o grupo que se autointitula
defensor do conceito "politicamente correto" jogar o autor de A Pedra
do Reino na masmorra da censura, para fazer companhia a um dos mais influentes
escritores brasileiros, Monteiro Lobato. Como se sabe, este autor foi execrado
por comparar Tia Anastácia, personagem de Caçadas de Pedrinho, a uma "macaca
de carvão" e, mais recentemente, porque seu conto Negrinha teria conteúdo
racista, na visão de uma entidade de advocacia racial e ambiental. Ora,
estudiosos consideram o conto um libelo contra a discriminação.
A polêmica sobre o uso do lexema negro na literatura
se expande na esteira do debate sobre direitos humanos e combate às variadas
formas de discriminação. Acontece que as lutas pela igualdade têm jogado na
vala comum da discriminação manifestações de todo tipo, mesmo as que retratam
um ciclo histórico. É o caso da obra de Monteiro Lobato, que nasceu seis anos
antes da abolição da escravatura e vivenciou, até na fase de escritor, a
segregação de escravos. Não há como imaginar personagens que tanto encantaram
crianças e adultos - Emília, Pedrinho, Saci-Pererê, Visconde de Sabugosa, Tia
Anastácia - adotando, ao final do século 19, a expressão que as patrulhas acham
corretas. Quem quiser associar Lobato à discriminação certamente vai forçar a
barra para encontrar o ato de ofício, como se diz nestes tempos de julgamento
do mensalão. É uma questão de interpretação.
Ele retratava um tempo em que a negritude era
apresentada de maneira pejorativa. Censurar a expressão de uma época é apagar
costumes, queimar tradições. Contextualizar para os alunos de hoje, por meio de
anexos e notas explicativas, obras literárias do passado é passar recibo de
ignorância. Sinal de barbárie cultural. Para que servem professores? Não são
eles que ensinam, interpretam e analisam as condições dos ciclos históricos?
Veja-se esta frase do padre Anchieta sobre os
índios: "Para esse gênero de gente, não há melhor pregação do que espada e
vara de ferro". Isso tira seu mérito de catequizador? Não sem razão
Joaquim Nabuco, o abolicionista, se indignava com os sacerdotes que possuíam
escravos: "Nenhum padre nunca tentou impedir um leilão de escravos, nem
condenou o regime religioso das senzalas". Que tapume se pode se colocar
nas páginas de O Mulato (1881), de Aluísio Azevedo, onde se lê: "Se você
viesse a ter netos, queria que eles apanhassem palmatoadas de um professor mais
negro que esta batina?". E como apagar trechos de Histórias e Sonhos, de
Lima Barreto, que registra: "Não julguei que fosse negro. Parecia até
branco e não fazia feitiços. Contudo todo o povo das redondezas teimava em chamá-lo
feiticeiro". Barreto é o mesmo que escreveu Clara dos Anjos (1922), libelo
contra o preconceito que conta a história de uma mulata traída e sofrida por
causa da cor. Quanta estultice prendê-lo nos grilhões da discriminação.
Nessa toada, passamos por Bernardo Guimarães.
Em sua Escrava Isaura (1875) há trechos que hoje estariam no índex das
proibições: "Não era melhor que tivesse nascido bruta e disforme como a
mais vil das negras (...)?". Aportamos na Bahia de Jorge Amado. Em
Capitães de Areia descreve João Grande: "Negro de 13 anos, forte e o mais
alto de todos. Tinha pouca inteligência, mas era temido e bondoso". Pelo
andar da carruagem, os patrulheiros de plantão não se convencem nem mesmo com a
beleza poética do canto de Castro Alves. Enxergariam palavras politicamente
incorretas do tipo: "E quando a negra insônia te devora" ou
"corre nas veias negras desse mármore não sei que sangue vil de
messalina". Imaginem se descobrirem o jesuíta André João Antonil, autor de
Cultura e Opulência do Brasil (1711), fazendo esta consideração: "Os
mulatos e as mulatas são fonte de todos os vícios do Brasil".
Pode-se atribuir ao celebrado Fernando Pessoa
a pecha de machista? Eis o que pensava: "O espírito feminino é mutilado e
inferior; o verdadeiro pecado original, ingênito nos homens, é nascer de
mulher". É possível enxergar Shakespeare acorrentado nos porões da
censura? Pois em Otelo se lê que Brabâncio deixara a filha livre para escolher
o marido que mais lhe agradasse, mas descobriu que, em vez de um homem da classe
senatorial, a donzela escolhera um mouro para se casar. Decidiu, então,
procurar Otelo (o mouro) para matá-lo. O roteiro cabe na enciclopédia dos
patrulheiros.
Pergunta de pé de texto: por que a tentativa
de mudar a História? Simples. O entendimento dessa turma é que chegou a hora do
acerto final. Urge refazer a História do passado com os verbos (e as verbas) do
presente. Garantir que o ontem não existiu. Eis aí a pontinha da Revolução
Cultural que bu(r)rocratas tentam engendrar desde 2004, quando criaram uma
cartilha com 96 expressões que consideraram politicamente incorretas. Os
"inventores" da nova cultura poderiam até tentar mudar o Código de
Hamurabi, escrito por volta de 1700 a. C. Vão esbarrar numa montanha de
preconceitos.