Democracia autoritária? Essa figura existe no dicionário
de política? O conceito, que expressa incongruência, pautou dias atrás os
argumentos de dois ex-presidentes da República, Fernando Henrique Cardoso e
Alan García, durante sessão da Assembleia-Geral da Sociedade Interamericana de
Imprensa (SIP), realizada em São Paulo.
O brasileiro e o peruano denunciavam o retrocesso
político que ameaça os meios de comunicação na América Latina, decorrente de
"uma espécie de democracia autoritária", que, apesar de se estribar
em vitórias eleitorais, despreza valores democráticos como liberdade de
expressão e direito à informação. A inoculação do vírus autoritário no corpo
democrático, discutida pelos participantes no evento, faz-se ver, aqui e ao
derredor, por intermitentes manifestações (e concretizada em ações, como na
Venezuela, no Equador e na Argentina) de interlocutores governamentais e
partidários acerca da necessidade de estabelecer controles sobre a mídia. O
voto tem sido a arma sacada pela governança "democrático-autoritária"
para exercer a vontade e ditar regras aos regimes latino-americanos.
Não sem razão o ex-mandatário peruano lembra que pleitos
eleitorais e separação dos Poderes já não bastam para definir os valores da
democracia. Pois uma de suas vigas centrais, a liberdade de expressão, é
despedaçada toda vez que mandatários, à moda dos caudilhos, impõem sanções à
imprensa. Não fossem a reação da própria mídia e a indignação de polos sociais
contra o viés autoritário de governos, mordaças contra ela já se teriam
multiplicado. O fato é que a liturgia que envolve o altar democrático tem sido
conspurcada em partes do planeta, o que sugere a questão: por que tal propensão
autoritária? E por que floresce com maior abundância nos jardins do nosso
continente?
A análise começa com um pouco de História. A comunicação
no formato da massificação das ideias nasceu em 1450 numa sociedade
autoritária. Firmou-se sobre o primado do Estado como ente superior ao
indivíduo na escala dos valores sociais. Serviu como esteio da unidade de
pensamento e ação, formando a base para a continuidade dos governantes, os
herdeiros monárquicos; os nobres, que a usavam para proteger sua identidade na
política e na guerra; e os dirigentes da Igreja Romana, sobre os quais pesava a
responsabilidade de proteger a revelação divina.
O autoritarismo refluiu ante a expansão dos princípios
liberais, cujo escopo situava o Homem, independente e racional, acima do
Estado. Cabia a este prover os meios capazes de propiciar o máximo de
felicidade humana. O preceito autoritário dá vez ao axioma libertário, assim
sintetizado por John Stuart Mill no ensaio On Liberty: "Se toda a
humanidade, com exceção de uma pessoa, tiver certa opinião, e apenas esta
pessoa defender opinião contrária, a humanidade não abrigaria mais razão em
silenciá-la do que ela à humanidade". Essa visão iluminou os códigos da
sociedade democrática, como se vê na Constituição norte-americana, cuja
Primeira Emenda reza: "O Congresso não poderá formular nenhuma lei (...)
que limite a liberdade de opinião, ou a liberdade de imprensa". Ou a
Quarta Emenda, que prescreve: "Nenhum Estado poderá formular ou aplicar
qualquer lei que limite os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados
Unidos".
Na América Latina o viés autoritário tem sido mais
acentuado. A explicação pode estar no aparato que fincou profundas raízes desde
o vasto e milenar Império Inca, com seus grandes caciques, e depois o poderio
espanhol, povoado por reis, vice-reis, conquistadores, aventureiros e
corregedores, todos inclinados a implantar regimes de caráter autocrático. A
propósito, Maurice Duverger utiliza essa modelagem para explicar a opção
latino-americana por um presidencialismo de caráter imperial, ao contrário do
sistema parlamentarista que vicejou na Europa, inspirado na ideologia liberal
da Revolução Francesa. Aliás, o timoneiro Simon Bolívar, que tanto faz a cabeça
do comandante venezuelano Hugo Chávez, foi um dos primeiros a retratar a
vocação latino-americana para o personalismo: "Não há boa-fé na América nem
entre os homens nem entre as nações. Os tratados são papéis, as Constituições
não passam de livros, as eleições são batalhas, a liberdade é anarquia e a
vida, um tormento". Observando a contundência das batalhas eleitorais, as
nossas incluídas, constata-se o acerto (e a atualidade) da profecia
bolivariana.
O Brasil não escapa ao pendor autoritário, importado pela
colonização portuguesa e ramificado na árvore patrimonialista. Fernando
Henrique, que enxerga na contemporaneidade o nascimento de "uma democracia
autoritária", certamente há de registrar a disposição monocrática que
grassa em nossos costumes desde a velha Constituição de 1824, a qual atribuía a
chefia do Executivo ao imperador. O presidencialismo brasileiro é um desfile de
mandatários que vestem o manto de pais da Nação, beneméritos, heróis,
salvadores da Pátria.
Ademais, por aqui os direitos foram introduzidos de
maneira invertida, contribuindo para enxertar na seara democrática sementes
autoritárias: primeiro, os direitos sociais (veja-se a legislação
social-trabalhista e previdenciária do ciclo getulista), depois os políticos e
por último os civis, ao contrário do modelo clássico da cidadania, que começa
com as liberdades civis. Não por acaso, faz parte da nossa cultura o hábito de
"mamar nas tetas do Estado", sob as quais se desenvolve uma cidadania
passiva. A receita do bolo completa-se com o fermento populista, estocado nos
bornais de meia dúzia de perfis e usado para insuflar as massas a partir de uma
liturgia assistencialista.
As estacas autoritárias fincadas ao redor do arco de
valores democráticos funcionam como barreiras ao livre exercício da expressão.
Jornais e revistas passam a ser os alvos prediletos dos cultores de uma ordem
que desfralda, de um lado, a bandeira da liberdade e, de outro, a tarja negra
da coação.