É natural que os competidores partidários procurem exibir
seus troféus após a contenda eleitoral, mesmo quem obteve vitórias em isoladas
arenas do nosso vasto território. Afinal, a competitividade interpartidária, em
expansão na esteira de um país que se projeta como potente economia global,
confere à política alto grau de importância na escala dos interesses nacionais.
Compreende-se, pois, que o PT se arvore em maior
vencedor, ao argumento de que governará 27 milhões de eleitores a partir de
2013, aumentando em 15% as prefeituras; que o PSB proclame ser o partido que
mais cresceu porcentualmente, por ter pulado de 308 para 443 municípios e
passar a governar o maior número de capitais (5); ou, ainda, que o PMDB
desfralde a bandeira do maior número de cidades sob sua administração (1.031) e
a segunda posição na soma eleitoral (23,1 milhões de votos), mesmo sofrendo
queda de 13,5% em relação a 2008. É até razoável a tese de que as oposições
ganharam fôlego, com as expressivas vitórias do DEM em Salvador e do PSDB em
Maceió, Manaus, Belém e Teresina, além de ficar com a terceira posição no
ranking de eleitores (16,5 milhões). Da leitura mais atenta do quadro eleitoral
se pinça, porém, um conjunto de recados que partidos e líderes precisam ouvir e
ponderar, sob pena de verem fechadas as portas de seu futuro político.
O pleito deste ano, para começo de conversa, se despiu de
arabescos que adornavam a liturgia no passado, particularmente os mantos
festivos e os salamaleques de militantes dispostos a fazer vigílias cívicas por
seus candidatos. Há uma explicação para o fato, a começar pelo redesenho das
ruas. As multidões que acorriam aos eventos eleitorais, obedecendo ao sinal dos
comandantes, refluíram, passando a se abrigar em grupos reunindo categorias
profissionais. Sua participação no cenário político perdeu intensidade. Não se
veem mais densos contingentes mobilizados para ouvir a peroração mofada de
candidatos e cabos eleitorais. Ante um cenário social menos barulhento e
conflituoso, os antigos trombeteiros das massas passaram a ter menos ouvidos
para fazer ecoar seus surrados refrãos. A subtração das multidões tem, ainda,
conexão com dois fenômenos pouco sensíveis ao faro dos nossos atores políticos:
a autonomia decisória dos cidadãos e a emergência da micropolítica. O primeiro
se ancora na expansão da racionalidade eleitoral e o segundo se amarra na
árvore da pragmática política.
A cada pleito, o voto abandona o espaço emotivo para se
refugiar no terreno da razão. Sai do coração e sobe à cabeça. O processo, lento
e gradual, acompanha a dinâmica social, cujas alavancas apontam para a expansão
educacional e a ascensão das categorias sociais nos andares da pirâmide. Noutra
ponta, a cadeia de casos negativos - escândalos, denúncias, tramoias, corrupção
- propicia o desencanto dos eleitores com a velha política. Partidos passam a
ser substituídos por novos polos de referência, como a constelação de entidades
organizadas. Os aglomerados populacionais, dispersos e anônimos, cedem lugar às
comunidades regionais. O todo divide-se em partes. Forma-se, assim, uma base
sobre a qual se assenta a autonomia cidadã, e esta é a alavanca que abre as
opções eleitorais.
Tem diminuído, sensivelmente, a fila de eleitores que
ainda obedecem aos comandos de caciques políticos. (É patente que Lula pinçou
Fernando Haddad do bolso do colete e o elegeu. Ponto para ele. Mas não se pode
negar que perdeu em Salvador, Manaus, Belo Horizonte e Fortaleza, onde abriu o
verbo - e promessas de verbas - para os seus candidatos.) A organicidade social
volta-se para a defesa do hábitat, o bairro, os distritos, as regiões, onde a
micropolítica estabelece um apreciável conjunto de demandas, principalmente as
que afetam diretamente a vida comunitária, como saúde, educação, transportes e
segurança. Abre-se o tempo do cidadão pragmático.
Exemplos de racionalidade e autonomia ocorreram em muitas
frentes no pleito deste ano. Encaixam-se nesses compartimentos, por exemplo, a
eleição de Clécio Luís (PSOL), em Macapá, e de Edivaldo Holanda Júnior (PTC),
em São Luís. Ambos são de partidos nanicos e, pasmem, encravados em Estados
dominados por pesado caciquismo político: Amapá e Maranhão. Trata-se de um bem
aplicado puxão de orelhas que o eleitor dá na política embolorada. Outra
sinalização da racionalidade é dada na área dos gêneros. As mulheres avançam no
campo da administração municipal, conquistando 664 prefeituras, ou 12,03% do
total. Em 2008 foram 9,12%. No rol de recados há também o que indica o desejo
de renovação. Perfis que encarnam mudança de página, estética e semântica
diferentes das que se conhecem no mercado da política passam agora a povoar o
mapa municipal.
Por último, distingue-se o eleitor descontente e
indignado: ele se abstém, vota nulo ou em branco. E sabe separar alhos de
bugalhos, eleição de mensalão ou de "kit gay". Acontece que a
descrença social na política nivela todos os atores. O eleitorado não enxerga
um partido mais ético ou menos moral que outro. A corrupção na esfera da
representação bate em todos os entes partidários. Campanhas de desconstrução de
adversários, portanto, não angariaram a simpatia dos cidadãos.
Em São Paulo, por exemplo, há anos o revezamento se dá em
torno de Serra e Alckmin. Como se sabe, a ordenação dos ciclos eleitorais, que
exige permanente troca de perfis, é pedra fundamental no jogo de poder. Ou, no
dizer de Elias Canetti, é um atributo eminente da dominação política. Eis a
analogia que o autor de Massa e Poder faz com a figura do rei: "Se o rei
começa a envelhecer, sua força mágica está ameaçada. Pode diminuir ou
enfraquecer, transformar-se em seu contrário; por isso, tira-se a vida do rei
que envelhece para transferir sua força mágica ao sucessor". Qualquer
semelhança com nossos "velhos reis" não é mera coincidência.