O julgamento da Ação Penal 470 (mensalão)
mudará a cultura política. É evidente que a mudança não ocorrerá de maneira
abrupta. Será lenta gradual. É de se esperar por um processo de depuração da
vida parlamentar, após a decisão do STF de punir poderosos, a partir de
representantes do povo no Parlamento. Alterações nos padrões funcionais e nos
costumes parlamentares são exigências do momento que o país atravessa. Por que
as mudanças demorarão a vir? A resposta, convenhamos, é complexa e, de pronto,
esbarra na lição de Maquiavel: "Nada é mais difícil de executar, mais
duvidoso de ter êxito ou mais perigoso de manejar do que dar início a uma nova
ordem de coisas. Na verdade, o reformador tem inimigos em todos os que lucram
com a velha ordem e apenas defensores tépidos nos que lucrariam com a nova ordem."
Sejamos realistas. Há poucos reformadores nos conjuntos parlamentares e há
muitos que lucram com a manutenção dos velhos sistemas. Entre os que apregoam
mudanças, uns apontam para medidas pontuais e momentâneas, cujo escopo não
abriga a matriz das mazelas, e outros há que nem sabem por onde se chega ao
caminho das mudanças.
Sob esse feixe de hipóteses, três vertentes
se apresentam como as mais prováveis na esfera das ocorrências futuras: a
primeira é de que o atual ciclo de tensão será ultrapassado pelo próxima; a
segunda, ancorada na banalização, mostra o brasileiro cada vez mais impermeável
à barbárie da política; e a terceira, regada a esperança, põe fé na crença de
que uma flor pode nascer no pântano. Nesse caso, aposta-se na reconstrução das
regras do jogo político. As duas
primeiras vertentes são maléficas para o caráter nacional. Comparam-se às
maldições de Sísifo e Mané. Basta estabelecer a relação entre elas e a nossa
crônica crise política. Condenado a carregar uma pedra sobre os ombros e depositá-la
no cume da montanha, o matreiro rei de Corinto jamais iria conseguir o feito. O
castigo que os deuses lhe deram no Hades, o mundo dos mortos, era definitivo:
recomeçar a tarefa todos os dias por toda a eternidade. De tanto fazer o
esforço repetitivo, virou um Mané, aquele esforçado sujeito que, obcecado pela
ideia de escapar do fundo do poço, onde caiu, tornou-se insensível a qualquer
ajuda externa. Uma pessoa ouviu um barulho, aproximou-se do poço, jogou uma
corda e gritou: "Pegue a corda e saia." Irritado, o bronco respondeu:
"Não vê que estou trabalhando? Não quero sua ajuda."
O brasileiro tem um pouco de Sísifo e um
pouco de Mané. Ao achar que a situação começa a melhorar - com a pedra chegando
ao pico da montanha -, vê, de repente, a coisa degringolar. Terá de reiniciar a
tarefa de subir com o pedaço de rocha. Um eterno retorno. A repetição do
maçante exercício de expectativas frustradas brutaliza seus instintos.
Torna-se, assim, impermeável aos eventos que ocorrem ao seu redor, mesmo os
mais catastróficos. Vira catatônico. Essa é a carga psicológica que a crise
deposita sobre a alma nacional. O ciclo de banalização de escândalos que, nos
últimos anos, se espraia pela frente política afeta um dos mais altos valores
republicanos: a confiança nos políticos. Escorrendo pelo ralo, ela arrasta
consigo a força da nacionalidade, o amor à Pátria, o sentimento de inclusão e
de identificação com os símbolos nacionais, o orgulho de pertencimento a uma
sociedade com padrões éticos e morais. Mas há quem distinga as luzes de um
contraponto, um sinal de esperança. Sinal aberto pelo julgamento do mensalão.
Nesse caso, a hipótese leva em conta o eco da tuba de ressonância da mídia.
Todas as camadas - com acesso à TV e ao rádio - vêem a lama que escorre da
arquitetura política. E passam a exigir mudanças;
As conexões formam a química para a flor
nascer no lamaçal. A crise de desconfiança que assola a esfera política flagra
os atores do palco da representação social. Essa é a associação que se processa
no sistema cognitivo da sociedade. A infalível interlocução das ruas e de
parlatórios mais elevados propaga um sentimento, mesmo difuso, de mal-estar
generalizado. Cristaliza-se a convicção de que a desobediência às leis e a
infração a valores morais e princípios éticos nascem e se desenvolvem na roça
dos próprios autores das leis. Tal contradição agita os ânimos de espíritos E,
assim, parcela ponderável da sociedade abre o bico em sinal de protesto e
indignação. Críticas ácidas saem de esquadrões da classe média, cuja repulsa
aos maus comportamentos emerge de forma contundente na mídia.
Portanto, da sensação de que está sempre
vendo as mesmas coisas e da constatação de que os tonéis da corrupção estão
locupletados o brasileiro extrai a argamassa para aumentar a pressão por
mudanças. Dessa operação, por uma combinação de fatores - escândalos em
profusão, repercussão na mídia, atores que, até então, eram imunes às
condenações, corporativismo -, desenvolve-se um mecanismo de repulsa e ações
organizadas se expandem nas redes sociais. A deterioração do sistema político
faz florescer ondas de indignação. Essa é a flor no pântano, cuja propagação
obedece a um movimento centrífugo, do centro para as margens, ou seja, das
classes médias para os habitantes da base da pirâmide.
Vale lembrar o preceito da ciência política
pelo qual as grandes mudanças da História são produzidas quando os favorecidos
e apaniguados do poder não têm a capacidade para transformá-lo em força,
enquanto os que dispõem de pequeno poderio aproveitam essa capacidade ao máximo
para convertê-la em força crescente. É o que estamos começando a ver por aqui.
Se falta vontade do andar de cima, sobra
revolta do andar debaixo. Como no jogo de xadrez, o peão pode ganhar força superior
à do bispo. Essa é a chama da esperança que começa a florescer nos jardins de
nossa República, por ocasião de seu 123º aniversário.