O roteiro é mais que conhecido. Desvenda-se a
trama de tráfico de influência envolvendo quadros da administração pública em
conluio com figuras dos negócios privados, indiciam-se e afastam-se implicados,
abrem-se processos, os casos entram nos longos corredores da Justiça, sob o
bumbo midiático e a ação de partidos interessados em tirar vantagem da celeuma.
Vejam o último episódio. A investigação que flagrou Rosemary Nóvoa de Noronha,
chefe do gabinete da Presidência em São Paulo, usando o cargo para intermediar
interesses assume proporções impactantes por apontar suas ligações com o centro
do poder (o próprio Palácio do Planalto, onde trabalha a presidente Dilma), com
o ex-presidente Luiz Inácio e outras figuras de relevo, como o ex-ministro José
Dirceu. Mas acabará no baú do esquecimento, pois os braços da lei, como é
sabido, costumam deter e punir criminosos, porém são curtos para propiciar
assepsia completa em costumes e práticas de agentes públicos. Ainda mais quando
se sabe que o tráfico de influência está no topo de nossas mazelas desde os
tempos em que o escriba Pero Vaz de Caminha, na carta do Descobrimento do
Brasil, pedia ao rei a volta a Portugal de seu genro, degredado na África por
ter roubado uma igreja e espancado o padre.
Abre-se a questão com a pergunta: por onde
começar o combate às formas de corrupção com origem no tráfico de influência? A
resposta sugere que se comece pelo Judiciário, pelo nexo que se forma entre
corrupção e sentimento de impunidade. É generalizada a impressão de que, fossem
punidos de forma rigorosa corruptos de todos os calibres, o País abriria um
novo capítulo em sua História. Daí ser alvissareira a promessa do novo
presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa, de continuar
a devassa nos tribunais, luta em que se engajou a ex-corregedora do Conselho
Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon. A limpeza nos canais e corredores
do Judiciário é fundamental para a implantação de um abrangente programa de
moralização nos vãos e desvãos dos Poderes, firmando a crença de que a ansiada
meta de passar o País a limpo, até que enfim, será atingida. E por onde deveria
começar a faxina no Poder que administra a justiça? Se o exemplo deve partir de
cima, é razoável sugerir que os tribunais mais elevados devem abrir a tarefa de
moralização institucional. De início, pelo menos três situações deverão ser
contempladas pela nova agenda do Superior Tribunal de Justiça: a advocacia
praticada por advogados parentes de magistrados, o patrocínio de empresas para
encontros de juízes e a independência da magistratura.
O que deve ser levado em conta, qualquer que
seja a circunstância, é a preservação da identidade desse Poder da República,
que goza do mais alto conceito da sociedade. Não se trata de proibir filhos de
juízes de exercer o múnus nem de censurar organizações que tentem estreitar
laços com o Judiciário. Mas evitar que a equidade da Justiça seja rompida e
desviada em benefício de uns e em detrimento de outros, ameaça sempre presente
quando operadores do Direito alteram ou se empenham para adulterar
procedimentos sagrados do império legal. O juiz independente, por sua vez, é
aquele que ordena uma justa sentença, nos termos do filósofo Francis Bacon:
"Deus costuma abrir o seu caminho elevando vales e abaixando montanhas; de
maneira que, se aparecer, do lado de uma das partes, um braço poderoso, uma
pressão violenta, astuciosas vantagens, combinações, poderes, grandes
conselhos, nesse caso a virtude do juiz consiste em nivelar desigualdades para
poder fundar sua sentença num terreno plano".
É difícil uma planta conservar sua pureza
quando banhada por lodo. Mas, urge lembrar, flores também nascem no pântano.
Uma das promessas não realizadas pela democracia, na lembrança de Bobbio, é o
combate ao poder invisível, que floresce nos votos de escambo e permuta (fontes
de mensalões), nas malhas intestinas da administração pública e em máfias de
intermediação de negócios. Os governos, por mais democráticos, não conseguem
dar plena transparência às suas ações, robustecendo, assim, o "poder
mascarado" que se ramifica nos Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário.
Da tríade que se forma nas modernas
democracias - tecnocratas, círculos de negócios e atores políticos - se origina
a maior parcela do produto nacional bruto da corrupção. Essa composição, a
merecer rigorosa análise dos mecanismos de defesa da sociedade, exige sistemas
ágeis para apurar denúncias e um Judiciário imune às pressões de cadeias
particulares - algumas com ligações políticas - que intentam interferir em
processos para obter vantagens. Castas, seitas, grupos, corporações, núcleos
profissionais podem até pressionar os Poderes para fazerem valer pontos de
vista - sob a égide da livre associação e liberdade de expressão -, mas a eles
se impõe o dever de exercitar suas funções de maneira transparente, obedecendo
a preceitos éticos e morais condizentes com os padrões civilizatórios. No caso
do instrumental da Justiça, maiores cuidados devem ser tomados. Afinal, a
Justiça não pertence a nenhum campo, a nenhum partido, todos são moralmente
obrigados a defendê-la.
Por último, é oportuno acrescentar que os
focos de corrupção que se disseminam nos porões da administração pública se
relacionam a outros fenômenos perversos, dentre os quais a burocracia e a
mediocracia. O primeiro se ampara num amontoado de leis e regulamentos, donde
se originam veredas e desvios para as negociatas e dribles na Justiça. O
segundo leva em conta a influência política para a indicação e ocupação de
cargos públicos. Perfis medíocres e quadros despreparados acabam integrando os
pelotões de corrupção nas três instâncias federativas. O servilismo emerge,
dessa forma, na sombra do favoritismo. Sob a bandeira da injustiça e da
indignidade.
É mais do que hora de resgatar o brasão dos
justos, hoje alvo de escárnio: "Não há nada que pague o preço da
honra".