Ao tentar buscar no imaginário dos
brasileiros a imagem de rainha para a presidente Dilma Rousseff, o marqueteiro
João Santana provocou, dias atrás, acirrada polêmica entre gregos e troianos.
Não apenas nas oposições a ideia pareceu mirabolante. O próprio petismo, ao
fazer voto de silêncio em torno da comparação, pareceu incomodado com a
vinculação da mandatária à monarquia, cujas tradições conservadoras fazem
reviver as lutas de muitos povos contra o colonialismo e a opressão.
Nestes tempos de luzes que iluminam o
Estado-espetáculo, até que reis e rainhas caem bem na foto, principalmente
quando se cercam de muita pompa e uma prole glamourosa, com netas, netos e
lindas princesas, como é o caso da família real inglesa. A estética da liturgia
monárquica é a mensagem que chega ao cidadão comum. Sob tal hipótese, hão de se
ver seus figurantes não como governantes, mas como estrelas brilhantes a atrair
os olhos de multidões turísticas nos países que ainda cultuam o modelo.
Santana arriscou um olhar estético quando viu
nossa presidente ocupando "a cadeira de rainha". A imagem pinçada
pelo profissional de marketing parece apropriada. A par da concentração de forças
inerentes ao presidencialismo, como é o caso do modelo brasileiro, o perfil de
mando encarnado pela presidente da República reforça, sim, o retrato de uma
rainha sentada no trono. A observação, pois, excede o território estético e
adentra o campo semântico.
A descomunal força do presidencialismo tem
que ver com a feição de nossa Federação. Em seus primórdios, mais exatamente em
1891, quando nasceu, a Federação era expressão de equilíbrio entre seus entes.
Até 1930 se preservou a divisão de competências entre o governo central e os
Estados federados. A harmonia foi quebrada com a centralização de poderes pela
ditadura Vargas. O resgate do modelo original reapareceu na Constituição de
1946, quando competências foram devolvidas aos Estados. Na ditadura militar
voltou-se à concentração de mando: nada se fazia sem o consentimento dos
generais. A Carta Magna de 1988 reabriu a esperança de resgatar o equilíbrio
federativo. Não ocorreu. Os Estados perderam parcela de suas competências e a
União ganhou unhas e dentes de leão, constituindo-se em polo central da
concentração tributária, por meio das contribuições (tributos exclusivos da
União), fonte principal da arrecadação. Para se ter uma ideia, Cide e Cofins
representam, juntas, mais de 25% da receita total arrecadada no País. A União
injetou fermento em sua fatia do bolo, sugando as parcelas de Estados e
municípios. As distorções acompanharam a dinâmica do crescimento. Hoje os
Estados não chegam a ganhar 25% do bolo tributário, enquanto a União detém 57%
e os municípios, 18%.
Em 1965 criou-se o Fundo de Participação dos
Estados (FPE) para atenuar desigualdades socioeconômicas entre os entes. A
Carta de 88 abriu a possibilidade de regular a partilha dos recursos. Mas os
congressistas não conseguiram, até o presente, definir critérios de
distribuição. Os Estados submetem-se a uma tabela fixa que perdura há duas
décadas. Para corrigir tal distorção a Suprema Corte declarou a
inconstitucionalidade da tabela, definindo que a partir de 2013 outra lei de
partilha deveria regular a questão. Não foi feita. O "jeitinho"
brasileiro - articulação parlamentar no STF - conseguiu prorrogar o modus
operandi antigo. Ao longo dos anos, o congelamento da tabela de repartição do
fundo propiciou novas distorções, contribuindo para aprofundar as disparidades.
Diante do descalabro, surge a pergunta: por que não se constrói nova modelagem
para corrigir as injustiças? Ora, quem é dono da flauta dá o tom. E a dona é a
União. O governador de Minas Gerais, Antonio Anastasia, explica: "Não há
na consciência brasileira o espírito de colaboração, cooperação e solidariedade
da União para com Estados e municípios".
O quadro é desolador. Os 2.700 municípios com
até 10 mil habitantes arrecadam apenas o equivalente a 4% de suas despesas. Os
municípios entre 10 mil e 20 mil habitantes arrecadam 8,9% das despesas,
porcentual que sobe para 13% nas unidades entre 20 mil e 50 mil habitantes. Nos
grandes municípios, incluindo capitais com mais de 1 milhão de habitantes, a
arrecadação própria fica em menos de 40%. A dívida ativa dos municípios chega
aos R$ 75 bilhões. E a dos Estados é impagável: ultrapassa 10% do PIB, ou mais
de R$ 450 bilhões, entre dívidas interna e externa. Emergem nessa encruzilhada
as querelas estaduais e municipais: como alterar a alíquota do ICMS sem
prejudicar os Estados mais pobres? Como distribuir de forma mais democrática os
royalties do petróleo, de modo a evitar o privilégio concedido a apenas dois
Estados?
Neste ponto, convém assinalar que um viés
político aparece no desenho federativo. Não há como escapar ao axioma que
explica a engrenagem do poder: "quanto maior a divisão, mais soma alcançam
os poderosos". Enquanto a União expande força, Estados e municípios perdem
gordura. O regime presidencialista se abastece, assim, na torrente de poderes
que inunda os espaços da União. Até parece que temos uma Federação unitária. Os
valores centrais do sistema federativo - solidariedade, integração, cooperação
- se esfacelam. Forma-se, sob admirado modelo democrático do mundo ocidental (o
Brasil já é assim apresentado), um Estado de feição imperial. Sob a designação
de República Federativa do Brasil.
O caráter absolutista
que se impregna na Federação e anima nosso sistema de governo, vale lembrar,
não é algo do ciclo petista. Vem-se desenvolvendo ao longo das últimas décadas.
Ao Poder Legislativo, cabe a decisão de mudar os rumos dessa feição capenga.
Antes tarde do que nunca. A imagem da presidente Dilma como rainha sentada no
trono do Palácio do Planalto é uma sacada séria (e não engraçada) de seu
marqueteiro. Pois contém teor de verdade. Tanto no simbolismo estético quanto
na significação semântica.